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  • Foto do escritorAriane Roque

O despreparo de uma profissional do SUS e a política de embranquecimento

Atualizado: 3 de set. de 2023



O dia tão esperado da vacina chegou, mas junto com ele veio o preconceito


Por Ariane Roque


Depois de meses, chegou a minha vez de tomar a vacina contra a Covid-19. Na UBS (Unidade Básica de Saúde) próxima ao meu bairro, localizada na zona leste da cidade de Mogi Mirim, enfrentei uma pequena fila. Durante esse processo de espera, preenchi a ficha cadastral com todas as minhas informações. Uns 15 minutos depois, fui chamada para dentro do posto de saúde para aguardar o momento da aplicação da vacina. Não demorou muito, e logo ouvi meu nome. Até o momento nada de diferente, mas após ser vacinada precisei verificar minhas informações com a pessoa responsável por passar os dados do papel para a ficha on-line. Foi quando eu tive a minha identidade rejeitada.


No último ano, passei por um processo de autoconhecimento e, após anos questionando a minha identidade, me reconheci como uma mulher preta, aos 20 anos. Preta de pele clara. Toda essa demora foi porque cresci dentro de uma caixinha, em que fui obrigada a entrar. As pessoas ao meu redor me veem como “morena” ou parda, e meus pais nunca me definiram nem me ensinaram o que é racismo e que eu poderia passar por situações de discriminação por não me encaixar num padrão da branquitude. Com leituras e acesso a vídeos produzidas e gravados por pessoas pretas, fui me desconstruindo e ressignificando a minha identidade. Foi quando aprendi sobre o colorismo, termo que cria tonalidades da pele preta, da mais clara à mais escura.


Entendo que esse assunto ainda precisa ser debatido e refletido pela sociedade, mas reproduzir esse comportamento de não reconhecimento da diversidade de tons da pele preta é uma forma de contribuir para a perpetuação do racismo e do embranquecimento da população. Principalmente, porque, no Brasil, a abolição da escravatura, em 1888, não proporcionou nenhum tipo de lei ou de políticas públicas que garantissem efetivamente a inserção das pessoas pretas na sociedade e, com isso, facilitou o caminho livre para a cultura do embranquecimento, em que ser branco (ou o mais perto possível disso) é considerado algo melhor.


Um exemplo para ilustrar é a Constituição de 1934, em que o Estado brasileiro incentivava o branqueamento da população através da educação eugênica, assegurada pelo Art.138 b. Ou seja, buscavam através de medidas socioeducativas incentivar jovens e adultos brancos a se casarem somente com pessoas da mesma cor e classe, a fim de que não existisse mais a população negra e indígena, o que levaria a seu completo desaparecimento. Apesar de a legislação ter sido abolida em 1937, a mentalidade que a gerou ainda não desapareceu.


Com isso, retorno ao presente, e ao meu ocorrido após ser vacinada. Durante a verificação dos dados da ficha cadastral, me perguntaram como me identifico. Com toda certeza, respondi: “negra”. E automaticamente recebi um: “Não, parda”. Mais uma vez me afirmei, mas fui ignorada. Foi como um balde de água fria. Ainda que o pardo seja considerado pelo IBGE como parte da população negra, junto com os pretos, o que eu queria dizer é que me vejo como preta, que estou ligada à cultura negra a partir desse lugar.


O constrangimento e o sentimento de desrespeito tomaram grandes proporções, num momento de conquista e alívio (a vacinação). Fiquei paralisada, pois não esperava ser contestada sobre minha própria identidade, a minha autodeclaração. Afinal, por que me perguntar, se no fim minha palavra não serviu de nada?


Etnias na vacinação


Como uma forma de evitar situações como essa que me ocorreu, o Ministério da Saúde em 2017 passou a exigir o preenchimento do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação de saúde, por meio da Portaria n°344, respeitando a autodeclaração. “A coleta do quesito cor e o preenchimento do campo denominado raça/cor serão obrigatórios aos profissionais atuantes nos serviços de saúde, de forma a respeitar o critério de autodeclaração do usuário de saúde, dentro dos padrões utilizados pelo IBGE”. Ou seja, não se trata de como o profissional identifica a pessoa: o preenchimento dos formulários deve estar de acordo com a forma com que o indivíduo se autoidentifica. O que dificulta também a garantia de cumprimento da portaria é que não existe uma política de acompanhamento das fichas.


Essa medida foi instaurada com o objetivo de contabilizar a coleta de dados pelo viés da raça, de forma a dar um respaldo a Lei n°12.288, de 20 de julho de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial. A portaria considera a relevância e necessidade de obter informações de saúde dessa parcela da população, a fim de pensar e criar políticas públicas que atuem especificamente a esse grupo. Os dados, por exemplo, sobre a vacinação contra a Covid-19 revelam a desigualdade racial. Segundo a Agência Pública, enquanto 3,2 milhões de brancos foram vacinados, somente 1,7 milhão de negros receberam a primeira dose. Isso quer dizer que menos de 2 a cada 100 pessoas negras foram vacinadas. Já em relação às pessoas brancas, o parâmetro diz que mais de 3 a cada 100 pessoas receberam a primeira dose da vacina.


Entendo que a minha identificação como parda ainda me incluiria na população negra. Mas o que eu gostaria que respeitassem é a minha forma de me autodefinir como uma mulher preta, mesmo que meu tom de pele seja mais claro. Porque é assim que vejo a minha origem.


Essa situação me causou um misto de sentimentos: fiquei brava comigo mesma por não ter tido mais nenhuma reação, fiquei revoltada, pois não aceitava o que tinha me acontecido, e fiquei triste, mas, apesar de todos os sentimentos, o que prevaleceu foram as reflexões sobre a falta de preparo dos profissionais do SUS sobre a questão de raça, e também sobre como a palavra “negra” ainda é algo que assusta — e leva respostas como: “Imagina, você não é negra. Você é morena, parda”. Pense então se eu tivesse dito “preta”.



A “passabilidade”


As reflexões nos fazem pousar mais uma vez sobre a cultura do embranquecimento e de como a falta de preparo dos profissionais da saúde pode levar a situações de desrespeito. A falta de capacitação e o “achismo” alimenta essa cultura, que existe há tantas décadas no país. A ideia sempre presente de que “ser negro não é bom” invade o inconsciente de pretos, que sentem a inferiorização de sua etnia. Talvez não seja à toa que, do total da população preta e parda no país (54,6% dos brasileiros), apenas 8,7% se assumem pretos, segundo os dados do 4° trimestre de 2020 do IBGE.


Em resumo: por que me colocam como parda, e não negra? Isso ocorre em reflexo da herança escravista, que ainda não foi abolida, que consideram os brancos “melhores” que os negros. Por isso, quando a tonalidade de pele de uma pessoa se aproxima um pouco mais da dos brancos, que é o caso dos negros de pele clara, elas têm essa “passabilidade” pela sociedade: o que significa que ela é lida socialmente como parte de um grupo identitário diferente do seu pertencimento originário. Como o que me ocorreu: eu fui lida como uma mulher que “passa por” parda, e que não precisa se identificar como preta (ou negra, nos termos que usei).


Embora eu, Ariane, me identifique como uma mulher preta de pele clara, existem pessoas que veem a necessidade de se autodeclarar como parda perante a sociedade. Por exemplo, muitos dos que têm origem nos povos indígenas preferem essa forma de identificação. É importante assim, ter o cuidado para que não haja nenhuma exclusão de etnias: por isso, é preciso seguir o procedimento correto durante o atendimento, que é perguntar sobre a autodeclaração de cada indivíduo, e respeitá-la.


Em relação ao que me aconteceu, levei o caso para a Secretaria de Saúde da minha cidade, e até agora o único retorno que obtive foi uma confirmação de recebimento sobre o relato e o número de protocolo gerado, acompanhado de um encaminhamento para “Atenção básica”. Sendo assim, a luta continua diariamente.

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